Mitologias do Fascínio Tecnológico
A cultura digital do século XXI tem sido marcada pela ascensão de um imaginário mágico em relação ao poder das tecnologias. Por meio de uma produção monumental de símbolos, as indústrias culturais e a publicidade das mais diversas empresas de tecnologia têm veiculado mensagens a fim de relacionar o consumo tecnológico à conquista progressiva da autonomia, da liberdade, da felicidade e, em última instância, da transcendência. Este imaginário que induz à devoção das tecnologias parece seduzir as novas gerações com a promessa da elevação dos seres humanos à condição de semidivindades a partir do consumo físico e simbólico de produtos e marcas.
No entanto, sob o brilho deste deslumbre, o Estado e as corporações têm se movimentado no sentido de empregar recursos tecnológicos de forma sistemática para aprofundar o controle social de natureza tecnocrática, de modo que cidadãos e consumidores são observados e analisados em sua intimidade. Ofuscados pelo brilho mágico das tecnologias, usuários entregam voluntariamente informações detalhadas de suas personalidades e experiências pessoais para delegar aos algoritmos de inteligência artificial decisões cada vez mais importantes de suas experiências humanas, tornando-se mais vulneráveis a estímulos publicitários e propagandas ideológicas cada vez mais personalizadas e eficientes.
Entre os vários elementos para que o capitalismo informacional lograsse legitimar essa sociedade de controle tecnocrático, observamos uma intensa produção simbólica nas indústrias culturais no sentido de instrumentar a cultura digital com um fabuloso repertório iconográfico para, primeiramente, exorcizar os temores apocalípticos que as tecnologias sem limites haviam inspirado na humanidade – sobretudo após o advento da bomba atômica e da chamada crise da razão – e, em seguida, substituir os antigos temores por uma nova devoção aos mitos tecnológicos. Nesse contexto, mitologias ancestrais que expressavam as maldições divinas decorrentes da desobediência de homens e mulheres que ousaram ultrapassar os limites do conhecimento foram esvaziadas e invertidas, de modo que os consumidores contemporâneos, mais do que apenas perder o medo, passaram a cultuar esses mitos: da maçã proibida do Éden à mação mordida da Apple, do terrível Big Brother de George Orwell ao sedutor Big Brother da Endemol, da maldição do monstro de Frankenstein à celebração do gênio do cientista impetuoso no imaginário do Vale do Silício.
O objetivo desta pesquisa é compreender essa dinâmica de subversão de mitologias empregadas para superar os temores, atribuir uma conotação religiosa às experiências com tecnologias e, enfim, ofuscar o controle tecnocrático do ecossistema digital. Para isso, sob a perspectiva da Comunicação, da História Cultural e dos estudos de mitologia e imaginação social, analisamos um conjunto de símbolos evocados na imprensa, no cinema e na publicidade de empresas de tecnologia contemporâneas, situando-as no contexto histórico da utilização de arquétipos e mitologias na publicidade a partir do final do século XX. Como resultado, identificamos um conjunto de mitos e imagens arquetípicas manipuladas nas mídias para associar o consumo tecnológico ao imaginário sagrado da superação do pecado original, da reconquista do paraíso e da transcendência da condição humana.
Appendix A
- BARTHES, R. (2009). Mitologias. 4 ed. Rio de Janeiro: Difel.
- CHARTIER, R. (1985). A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil.
- ELLUL, J. (1964). The technological society. New York: Vintage Books.
- JUNG, C. G. (2000). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2 ed. Petrópolis: Vozes.
- ROSZAK, T. (1972), A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. 2 ed. Petrópolis: Vozes.
- TURNER, F. (2006). From Counterculture to Cyberculture: Stewart Brand, the Whole Earth Network, and the Rise of Digital Utopianism. Chicago: The University of Chicago Press.