Ciências Sociais Computacionais no Brasil

Juliana Marques (juliana.marques@fgv.br), FGV CPDOC, Brazil and Celso Castro (celso.castro@fgv.br), FGV CPDOC, Brazil

1. Introdução

O rótulo das Humanidades Digitais (HDs) ainda não é amplamente conhecido, ou deveríamos dizer reivindicado, pela academia no Brasil. Isto não quer dizer que não haja reflexões e produções sobre tecnologia digital e com tecnologia digital sendo realizadas em departamentos de Letras, de Artes, de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

As HDs podem designar tanto um conjunto de práticas de pesquisa que têm em comum a utilização de tecnologias digitais – sejam seus temas de interesse e objetos de pesquisa do mundo virtual ou não-, quanto um novo campo de conhecimento, muitas vezes com pretensão transdisciplinar e de fato, em grande parte, interdisciplinar (Alves, 2016;
Ortega and Gutiérrez, 2014; Schreibman et al., 2004
).

A história humana é também a história da criação de tecnologias, que ao longo do tempo, contribuíram para formular e solucionar problemas da vida em sociedade, criando variadas formas de conexão entre pessoas,
desde a coleta, o estoque e a preparação de alimentos até, milhares de anos depois, as máquinas à vapor, a eletricidade e a eletrônica (
Derry and Williams,

1993
). Para além de ferramentas e máquinas, no início do século 20, o termo passa a abranger uma gama crescente de meios, processos e idéias utilizados pelas pessoas para mudar ou manipular seu ambiente (
Behrent, 2013; De Landa, 1997).

O recorte aqui empregado delimita este conceito ao empregar a categoria de

t
ecnologia digita
l
, que se caracteriza pela transformação
de qualquer linguagem ou informação, incluindo textos, sons, imagens fixas ou em movimento, entre outras, em registros numéricos binários, isto é, em zeros e uns (0 e 1). Essa transformação depende de sistemas computacionais criados na primeira metade do século XX a partir de conceitos matemáticos do século XVII e é o que conhecemos, hoje, como informação digitalizada, ou seja, gravada neste código binário, também chamado de bits. Ela permite que grandes quantidades de informações sejam compactadas em pequenos dispositivos de armazenamento que podem ser facilmente preservados e transportados. Ou seja, a digitalização acelera a velocidade e aumenta a capacidade de transmissão e, posteriormente, de troca de informação. Sem dúvida, a tecnologia digital transformou e continua a transformar radicalmente a maneira como nos comunicamos e como atuamos no mundo (Mansell, 2002).

A fim de produzir novos conhecimentos edesenvolver
habilidades de trabalho adequados à revolução causada pelas tecnologias digitais de informação e comunicação
, passaram a atuar, juntos, profissionais das Humanidades e das Ciências da Informação
e Tecnológicas. O
trabalho conjunto tem visado, sobretudo, a
constituição e a difusão de acervos, repositórios e bibliotecas digitais, o uso de sistemas de informação geográfica, o tratamento computacional de linguagens, tanto as visuais, em seus variados formatos, como
as verbais, em formatos de texto ou de áudio, e a simulação de realidades virtuais
.

Segundo o
Digital Humanities Manifesto 2.0, a primeira onda de trabalho das HDs (no contexto internacional) foi quantitativa, mobilizando os poderes de pesquisa e recuperação do banco de dados, automatizando a chamada linguística de
corpus
etc. A segunda onda seria de caráter mais qualitativo e interpretativo, mobilizando a experiência e a emoção criadora. A partir de então, a riqueza hermenêutica das humanidades é resgatada. O Estado da Arte deste campo em formação apontaria agora para a necessidade de novas conexões e mudanças, que são facilitadas tanto por novos modelos de prática de pesquisa quanto pela disponibilidade de novas ferramentas digitais
.

Em 2013, a Alliance of Digital Humanities Organizations (ADHO) estimava que o termo Humanidades Digitais, empregado de forma polissêmica, era empregado em mais de 29 países, nomeava mais de cem centros de pesquisa e movimentava pelo menos 40 milhões de dólares por ano, em um movimento de expansão que se iniciou por volta de 1989. Foi também em 2013 que foi organizado, no Brasil, o primeiro congresso internacional dedicado ao assunto. O que sabemos sobre o histórico de práticas e do campo das HD no Brasil?

2. Objetivo

Este
trabalho se propõe a construir um panorama, ainda que incompleto, de uma parte circunscrita da cena nas Humanidades Digitais no Brasil
, que permanece em grande parte misteriosa
e inexplorada
.

O objetivo é
mapear, nas Ciências Sociais brasileiras desde a década de 1980 até o presente
, práticas, publicações, instituições e pessoas que aproximam tecnologias digitais e questões, teorias e métodos de pesquisa considerados tradicionais em seu campo. Nossa amostra inclui pesquisadoras e pesquisadores doutores que usam tecnologias digitais como ferramentas para análise e para construção do conhecimento (42%) e também aquelas que as encaram como tópico para reflexão (58%), na medida em que procuram dar conta de como essas tecnologias foram e vêm sendo concebidas, criadas e usadas.

Por Ciências Sociais, queremos dizer as subáreas da Sociologia, Antropologia, Ciência Política e Relações Internacionais. De acordo com a avaliação quadrienal da CAPES, publicada em
2017, são 126 Programas de Pós-Graduação a abrigar 197 cursos. Estima-se que são mais de mil professores e mais de 2.000 pesquisadores em formação.

Um estudo como este contribui para reunir informações sobre esse campo em formação, mesmo quando seus atores não rotulam o que fazem como Humanidades Digitais. É notório que muitos dos temas abordados pelas Hds dão título a pesquisas, cursos, publicações e eventos ocorridos no país. Justamente pela diversidade de estudos e aplicações que conjuga, a área
vem ganhando cada vez mais espaço, mesmo que ainda não forme uma comunidade de práticas bem definida
.

3. Proposta

A partir do mapeamento realizado, criar-se-á uma base de dados sobre a relação entre Ciências Sociais e
Humanidades Digitais no Brasil que permitirá a posterior realização de
análise de redes e georreferenciada, além de avaliações
qualitativas das práticas e temas privilegiados por cientistas sociais em contexto nacional.

Apesquisa
foi
realizada digitalmente em um processo que chamamos, sem perder o humor, de raspagem artesanal de dados, tendo como guia uma lista de 23 termos-chave, usados principalmente no banco de dados bibliográfico SciELO Brasil, no catálogo de teses e dissertações da CAPES e na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Os termos humanidades digitais, humanidades computacionais e tecnologias digitais guiaram as buscas no
diretório de grupos de
pesquisa do CNPq.
A busca pelo tema de interesse nas páginas dos programas de pós-graduação e, a partir daí, na Plataforma Lattes foi realizada através da leitura de todos os perfis docentes. N
o portal Periódicos CAPES, buscamos por revistas do campo das Ciências Sociais voltadas para o tema das tecnologias digitais, de forma ampla, e encontramos apenas duas revistas, avaliadas nos estratos B4 e B5
.

Os resultados apontam para maior inserção da subárea da Sociologia (42%) na cena das HDs, seguida pela Antropologia (36%) e então pela Ciência Política e Relações Internacionais (22%). No total, 70% dos 67 pesquisadores da amostra é composta por homens
e apenas 30% de mulheres, o que registra uma acentuada desigualdade de gênero, com destaque para maior equilíbrio entre antropólogos (54% homens, 46% mulheres). A maior parte dos pesquisadores e das iniciativas está concentrada em instituições públicas e nas
regiões Sudeste e Sul do país, que é onde está a maior parte dos programas e dos cursos de pós-graduação. Mais uma vez, na Antropologia, o interesse está mais bem distribuído geograficamente, com 29% de participação das regiões Sul, Sudeste e Nordeste. Chamou atenção como o Sul concentrou o movimento de vanguarda na criação de linhas e centros de pesquisa voltados para o mundo digital, ainda na década de 1980. O ponto de inflexão, com expressivo crescimento no número de pessoas, projetos e publicações que poderiam fazer parte da comunidade das HDs aconteceu por volta dos anos 2000 e, surpreendentemente, a tendência recente (dos últimos 5 anos) não parece ser de intensificação do engajamento com tecnologias digitais por parte dos cientistas sociais.

Nesse contexto, é imperante a formação de um novo profissional
com habilidades e competências conectadas com as transformações tecnológicas de nossos tempos. Esta é a realidade tanto para aqueles que já se encontram inseridos no mercado como para as gerações de profissionais ainda em formação. A interdisciplinaridade implica mudanças na linguagem, nas práticas, nos métodos, resultados e produtos de pesquisa, tendo cada vez mais como diretriz normativa a concepção de uma Ciência Aberta.

O artigo publicado em maio deste ano no periódico da FAPESP, intitulado A realidade que emerge da avalanche de dados, diz com muita propriedade que “Humanidades digitais se disseminam por várias disciplinas, influenciam formação de pesquisadores e inspiram políticas públicas” (Marques, 2017:
19). De fato, a apropriação das tecnologias permite que façamos mais rápido e mais além do que fazíamos anteriormente – principalmente com relação à análise de grandes volumes de dados -, motivando pesquisadores a buscarem formações inovadoras que os capacitem.

Logo, seja como novo campo seja como comunidade de práticas, as HD se colocam o desafio de incorporar novas perguntas, epistemologias e métodos à tradicional forma de trabalhar das Ciências Sociais. Emergem, portanto, questões teórico-metodológicas, éticas e políticas que se impõem a pesquisadores, educadores e estudantes.


Appendix A

Bibliography
  1. Alves, D.
    (2016). As Humanidades Digitais como uma comunidade de prática dentro do formalismo académico: dos exemplos internacionais ao caso português.
    Ler História
    , 69, 2016, pp. 91-103.
  2. Behrent, M. C.
    (2013). Foucault and Technology.
    History and Technology
    , 29:1, pp. 54-104.
  3. De Landa, M.
    (1997).
    A Thousand Years of Nonlinear History
    . New York: Zone Books.
  4. Derry, T. K.
    and
    Williams, T. I.
    (1993).
    A Short History of Technology: From the Earliest Times to A.D. 1900
    . Dover Publications.
  5. Mansell, R.
    Ed. (2002).
    Inside the Communication Revolution: Evolving Patterns of Social and Technical Interaction
    . Oxford and New York: Oxford University Press.
  6. Marques, F.
    (2017). A realidade que emerge da avalanche de dados.
    Revista Pesquisa Fapesp
    ,

    255, maio de 2017.
  7. Ortega, E. and Gutiérrez, S. E.
    (2014) MapaHD. Una exploración de las Humanidades Digitales en español y portugués. In Frías, E. R. and González, M. S. Eds.
    Ciencias Sociales y Humanidades Digitales Técnicas, herramientas y experiencias de e-Research e investigación en colaboración
    . La Laguna: Sociedad Latina de Comunicación Social, pp. 103-104.
  8. Schreibman, S., Siemens, R. and Unsworth, J.
    (2004)
    A Companion to Digital Humanities
    . Oxford: Blackwell.

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